sábado, 7 de novembro de 2009

O Urro Ancestral da Faculdade Injuriada

domingo, 1 de novembro de 2009, 01:59 - O Estado de São Paulo

*O Urro Ancestral da Faculdade Injuriada*

Universitários que encurralaram a colega de vestido curto não eram
delirantes: eram agressores

Debora Diniz** - O Estado de S.Paulo

O caso não caberia nem em um folhetim vulgar, não fosse o YouTube
denunciando a verdade. A "puta da faculdade" é uma história bizarra: uma
mulher de 20 anos é vítima de humilhações. A razão foi um vestido rosa e
curto que a fazia se sentir bonita. Sem ninguém saber muito bem como o
delírio coletivo teve início, dezenas de pessoas passaram em coro a gritar
"puta" e ameaçá-la de estupro. A saída foi esconder-se em uma sala, sob os
urros de uma multidão enfurecida pela falta de decoro do vestido rosa. Além
da escolta policial, um jaleco branco a protegeu da fúria agressiva dos
colegas que não suportavam vê-la em traje tão provocante.

Colegas de faculdade, professores e policiais foram ouvidos sobre o caso. O
fascínio compartilhado era o vestido rosa. Curto, insinuante, transparente
foram alguns dos adjetivos utilizados pelos mais novos censores do vestuário
da sociedade brasileira. "A roupa não era adequada para um ambiente
escolar", foi a principal expressão da indignação moral causada pelo vestido
rosa. Rapidamente um código de etiqueta sobre roupas e relações sociais
dominou a análise sociológica sobre o incidente. Não se descreveu a histeria
como um ato de violência, mas como uma reação causada pela surpresa do
vestido naquele ambiente.



O que torna a história única é o absurdo dos fatos. Um vestido rosa curto
desencadeia o delírio coletivo. E o delírio ocorreu nada menos do que em uma
faculdade, o templo da razão e da sabedoria. Os delirantes não eram loucos
internados em um manicômio à espera da medicação ou marujos recém-atracados
em um cais após meses em alto-mar. Eram colegas de faculdade inconformados
com um corpo insinuante coberto por um vestido rosa. Mas chamá-los de
delirantes é encobrir a verdade. Não há loucura nesse caso, mas práticas
violentas e intencionais. Esses jovens homens e mulheres são agressores.
Eles não agrediram o vestido rosa, mas a mulher que o usava para ir à
faculdade.

Não há justificativa moral possível para esse incidente. Ele é um caso claro
de violência contra a mulher. Ao contrário do que os censores do vestuário
possam alegar, não há nada de errado em usar um vestido rosa curto para ir
às aulas de uma faculdade noturna. As mulheres são livres para escolher suas
roupas, exibirem sua sensualidade e beleza. A adequação entre roupas e
espaços é uma regra subjetiva de julgamento estético que denuncia classes e
pertencimentos sociais. Não é um preceito ético sobre comportamentos ou
práticas. Mas inverter a lógica da violência é a estratégia mais comum aos
enredos da violência de gênero.

A multidão enfurecida não se descreve como algoz. Foi a jovem mulher
insinuante quem teria provocado a reação da multidão. Nesse raciocínio
enviesado, a multidão teria sido vítima da impertinência do vestido rosa. As
imagens são grotescas: de um lado, uma mulher acuada foge da multidão que a
persegue, e de outro, do lado de quem filma, dezenas de celulares registram
a cena com a excitação de quem assiste a um espetáculo. Ninguém reage ao
absurdo da perseguição ao vestido rosa. O fascínio pelo espetáculo aliena a
todos que se escondem por trás das câmaras. Quem sabe a lente do celular os
fez crer que não eram sujeitos ativos da violência, mas meros espectadores.

Pode causar ainda mais espanto o fato de que a multidão não tinha sexo.
Homens e mulheres perseguiam o vestido rosa com fúria semelhante. Há mesmo
quem conte que a confusão foi provocada por uma estudante. Mas isso não
significa que a violência seja moralmente neutra quanto à desigualdade de
gênero. É uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e
ultraje por um vestido curto em uma mulher. A sociologia do vestuário é um
recurso retórico para encobrir a real causa da violência - a opressão do
corpo feminino. Não é o vestido rosa que incomoda a multidão, mas o vestido
rosa em um corpo de mulher que não se submete ao puritanismo.

Não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar as mulheres.
Nem mesmo a situação hipotética de uma mulher sem roupas justificaria o
caso. Mas parece que uma mulher em um vestido insinuante provoca mais fúria
e indignação que a nudez. O vestido rosa seria o sinal da imoralidade
feminina, ao passo que a nudez denunciaria a loucura. A verdade é que não há
nem imoralidade, nem loucura. Há simplesmente uma sociedade desigual e que
acredita disciplinar os corpos femininos pela violência. Nem que seja pela
humilhação e pela vergonha de um vestido rosa.

**Antropóloga, professora da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero *

Um comentário:

Bianca Damacena disse...

Muito bom o texto...

Ao ver o vídeo pela primeira vez, me perguntei porque Ivetes Sangalos e Mulheres-Frutas da vida podem??
Só porque elas estão na TV e não na "vida real"?

Adorei o texto dessa professora.. ele tem que ser repassado em listas de emails pra todo mundo ler e se indignar com essa violência.

A propósito, a universidade expulsou a estudante.. o que será que o MEC vai fazer a respeito??